Eu sou um imprudente

«Procede impunemente aquele que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes, que esquece aquela lei dos banquetes: ‘Bebe ou retira-te’; enfim, que quer que a farsa não seja farsa. Pelo contrário, serás verdadeiramente prudente, vendo que és mortal, não querendo saber mais do que os outros, convivendo ou errando de boa vontade com a universidade dos homens. Dirão que isto é estultícia. Não o nego, mas concordai que é essa a maneira de agir na farsa da vida.»

Erasmo de Roterdão, ELOGIO DA LOUCURA (1509)

Mário Cesariny (1923-2006)

Mário Cesariny de Vasconcelos, nascido em Lisboa a 9 de Agosto de 1923, de pai beirão e mãe castelhana, foi o principal representante do surrealismo português. Além de poeta, romancista e ensaísta, Mário Cesariny dedicou-se também às artes plásticas, sobretudo à pintura.

Estudou no Liceu Gil Vicente, frequentou o primeiro ano de Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL) e mudou depois para a Escola de Artes Decorativas António Arroio, tendo igualmente estudado música com o compositor Fernando Lopes Graça.

Durante o período em que viveu em Paris, em 1947, frequentou a Academia de La Grande Chaumire.

Na capital francesa, conheceu o fundador do movimento surrealista francês André Breton, cuja influência o levou a integrar no mesmo ano, embora à distância, o Grupo Surrealista de Lisboa, formado por António Pedro, José-Augusto França, Cândido Costa Pinto, Marcelino Vespeira, João Moniz Pereira e Alexandre O'Neill.

Este grupo surgiu com o objectivo de protestar contra o regime político vigente em Portugal e contra o neo-realismo, mas houve cisões e Cesariny saiu, fundando mais tarde o "anti-grupo" "Os Surrealistas", com Henrique Risques Pereira, António Maria Lisboa, Fernando José Francisco, Carlos Eurico da Costa, Mário-Henrique Leiria, Artur do Cruzeiro Seixas e Pedro Oom, entre outros.

Em 1949, redigiu, com o grupo, o seu manifesto colectivo, "A Afixação Proibida" e promoveu as sessões "O Surrealismo e o seu Público em 1949" e a I Exposição dos Surrealistas.

Quando terminaram as experiências colectivas do que foi quase "um movimento (mais ou menos) organizado" - 1947/1953 e 1958/1963 - Cesariny prosseguiu sozinho, como fariam alguns dos seus outros companheiros que sobreviveram à aventura surrealista, com uma actividade inesgotável e orientada em várias direcções.

Nas suas obras, adoptava uma atitude estética caracterizada pela constante experimentação e praticou uma técnica de escrita e de pintura muito divulgada entre os surrealistas, designada como "cadáver esquisito", que consistia na elaboração de uma obra por três ou quatro pessoas, num processo em cadeia criativa, em que cada um dava seguimento, em tempo real, à criatividade do anterior, conhecendo apenas uma parte do que aquele fizera.


Autografia

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-los semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!


Mário Cesariny in “Pena Capital”, Assírio & Alvim

After all there was another


After all there was another - David Fonseca
Afinal havia outra - Mónica Sintra

GF - Bloopers

A propósito...

Nas guerras de D. João I de Portugal contra João de Castela e seu filho Henrique III (crise dinástica de 1383), quando todo o Alto Minho se havia já libertado do jugo invasor, Melgaço permanecia ainda nas mãos castelhanas. D. João I, impaciente com a resistência da praça, resolve assumir o comando das tropas e sitia esta vila. Num cerco que durou dois meses, notabilizou-se então a melgacense Inês Negra, vencedora em duelo travado contra certa mulher - a Renegada - também da vila, partidária do rei intruso. Conta Duarte Nunes de Leão, na sua "Crónica de D. João I":
"Havia uma mulher muito valente, parcial dos Castelhanos, que renegara a sua pátria, pois era daqui mesmo natural. Sabendo ela que no arraial dos Portugueses estava uma sua conterrânea, ousada e valente como ela, a mandou desafiar a um combate singular. Inês Negra aceitou o repto e se dirigiu para o ponto designado, que era a meia distância do arraial e da vila. Já lá estava a "arrenegada" e o combate começou encarniçado, ferindo-se com as mãos, unhas e dentes, depois de partidas as armas de que vieram munidas. (...) A agressora ficou debaixo, e teve de retirar para a vila, corrida, ferida e quase sem cabelo."
Os Portugueses "fizeram então grande algazarra aos Castelhanos" e, no dia seguinte (4 de Março de 1388), ocuparam finalmente a praça. Inês Negra, "cercada de besteiros, estava no alto da plataforma, onde o pendão das quinas ondeava, no mastro em que na véspera se ostentava orgulhosa a bandeira de Castela, e dizia com alegria: mas vencemos-te! Tornaste ao nosso poder. És do rei de Portugal".